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domingo, 3 de outubro de 2010

A Fotografia

Amarelecida pela fuga do tempo e pela oxidação da juventude jazia a fotografia, aparada pelo hospedeiro envernizado e artisticamente entalhado por algum poeta das formas. Suaves contornos compunham aquele instante esquecido no fosco pedaço de papel: a moça graciosa de sorriso eterno e quase infantil, rodeada por um céu intenso e longínquo.

Ele, mergulhado num conjunto quase infindo de anos de uma solidão contínua e viciante, deparou-se com o som triste de um choro pesaroso. Seus olhos, ao escutarem o piado nostálgico da tessitura que se compunha ao vento, pousaram defronte àquela lâmina de madeira que amparava o riso da moça presa a um passado empoeirado:

O riso chorava.

Ele, pensando-se enlouquecido, tirou o par de óculos que lhe trazia mais lucidez ao espírito e fixou o momento: a bela menina de traços liquefeitos esboçava um sorriso que nascia da juventude em flor. Mas o som, o canto amaríssimo de melodia suave adentrava pelos sentidos e comunicava aos velhos pensamentos que o pesar morava ali, naquele riso encarcerado.

Após alguns momentos de apnéia, consequente da surpresa a que se expunha, o velho trouxe os dedos finos aos olhos míopes, como tentasse se libertar daqueles fantasmas que se desgrudavam da polpa de papel carcomido pelo tempo.

Vagarosamente, a mente do velho, sulcada pelo pecado de ainda estar viva, deixou-se devanear em lembranças empoeiradas advindas das tralhas que guardara como adorno no interior da alma.

O riso deu as mãos desbotadas ao corpo cansado da jovem e trouxe-a para o presente dos olhos atônitos: era o amor que partira ainda nos anos de ouro e que estava de volta com as malas em punho, prestes a abraçar o fantasma abortado do corpo envelhecido.

Ela aproximou-se como se volitasse através de uma brisa que soprava ao sabor do que esperara por toda vida. O riso se converteu em vida, sua alma se reencarnou em juventude e ambos se abraçaram rodeados por uma eletricidade que lhes brotava do cerne da vida. Um beijo demorado com gosto de carne e pecado desvelou-se no aglutinar dos corpos em frenesi. Alvos lençóis de seda modelavam aqueles corpos nus e sedentos de carícias: elas desciam em avalanches crestando aqueles segundos intermináveis com o fogo de um amor transcendente.

Eles eram o presente e não seriam traídos novamente nem pelo tempo que desvasta, nem pelo flash mecânico que aprisiona e trai um amor.

No íntimo, o velho sabia que aquele momento epifânico lhe custaria as moedas de um resto de sofrer entorpecido pelo desmemorialismo, causado pela deserção dos neurônios ainda em vida.

Assim, após se recompor o homem pôs os olhos sob as lentes; sem, contudo deixar de fixá-los febris sobre a fotografia que lhes parecia sorrir. Ao longe, o sussurrar imantado à poeira do tempo produzia seu canto úmido de lágrimas.

As mãos frias e trêmulas daquela carne que se entregava ao flash último da vida, seguraram a fotografia do sorriso de encontro ao peito, com a força de uma fera pronta a devorar sua presa fragilizada. O velho sentou-se na poltrona tão antiga quanto suas ruínas interiores, olhou novamente o doce riso da jovem e rasgou a fotografia em pedaços pequeniníssimos. Deu então a última baforada de ar aos pulmões exaustos e sorriu ternamente ao escutar a voz do riso recém-liberto que se aproximava dos olhos lúcidos sob as lentes e, entre lágrimas, escutou com prazer a nova tessitura de som angelical que lhe chegava aos ouvidos: a morte abriria seus portais sagrados, com a benção da vida.

Por: Sandra Datti

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